quarta-feira, 27 de outubro de 2010

“Alma Welt não morreu. Em Glastonbury, a barca cruzou as brumas e a levou para o mundo das fadas.” (Jorge Lima*)

A Dama do Lago (II) (de Alma Welt)

À vezes me sinto quase exausta
De ser este vulcão, esta torrente
De poemas, visões e vida fausta,
Derramada, liberta, transparente.

Tudo revelei, não por bravata,
E me doei generosa a este mundo
E ao Pampa, como água vem do fundo
Da fonte do meu poço da cascata

Aonde sinto deitarei como na cama
Pois aqui avistei-me como a Dama
Do Lago, que recolhe a bela espada

Que eu, como Arthur, me atirarei,
Cumprida a minha missão inusitada,
De volta ao mar de brumas como o rei...

20/12/2006
_________________________________________________________


Duplo etéreo (de Alma Welt)

Ter a minha vida acompanhada
A cada passo e a cada pensamento
Por sonetos, qual diário da jornada,
Foi, bem cedo, a saída e o alento

Para viver em dobro, alternativa
Para quem tem, como eu, contados dias,
Pois que me vendo de novo nas poesias
Reitero meu viver, e estou mais viva.

Esse diário teve um custo quando nova,
Pois fez de minha Mutti minha crítica
E tenho marcas no traseiro como prova.

Mas tendo em duas vidas duplo etéreo,
Percebo agora que atingi a feição mítica
Que faz de mim mesma o meu Mistério.

(sem data)



O Muro (de Alma Welt)

No fundo do jardim existe um muro
O qual desde guria eu suspeito
Que separa o meu presente do futuro
O lado claro e o escuro do meu peito.

Suponho que os dois pólos profundos
Separam para todos estes mundos,
Não somente em mim com o meu sisma,
Sonhos, medos, devaneios e carisma.

Mas se a Poesia nasce do absurdo
Como a invisível presença de uma ilha
No maternal e imenso seio da coxilha,

O que me dá esse ar vago e passo etéreo
É que ouço uma trilha, num tom surdo,
Na cercania desse muro de mistério...

(sem data)

A castelã (de Alma Welt)

Sou Alma desta estância, ex Farroupilha,
Santa Gertrudes agora, em seu vinhedo
Cercando o casarão que ainda faz medo
Com estórias de guerras de guerrilha,

E de noites de gemidos e murmúrios
Que se ouvem ainda atrás das portas
Vindos de quartos, alcovas e tugúrios,
Ao som das batidas de horas mortas

Da torre de um relógio de outra era
Com seu dourado disco, mas de bronze,
Pendulando o silêncio até as onze...

Quem não teme visões de cemitérios,
Venha visitar-me, mas quem dera
Não ser eu a castelã destes mistérios...

(sem data)

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

A dama do lobo ( de Alma Welt)


 
 Alma e o lobo- óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2006, 150x150cm

A dama do lobo ( de Alma Welt)

"Amo vagar assim pelo meu bosque,
Mas, vede, por um lobo acompanhada
Até a cercania de um quiosque
Sobre o qual eu deveria estar calada

Pois ali fui por ele possuída
Em noite de prazeres e mistérios
Que me puseram, então, desfalecida
Em lances e perigos muito sérios...

E agora sou a branca dama errante
Nas noites derradeiras deste outubro
Que os peões tacham de infamante

Cogitando atear fogo na floresta
Quando a dama aquecida for ao rubro
Em tão lupina, escura e antiga festa"...


31/10/1999

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A dupla fonte da Alma (de Alma Welt)


Alma e o negrinho - pintura e de Guilherme de Faria

A dupla fonte da Alma (de Alma Welt)

Dupla fonte de desejos encontrei
No bosque meu, dourado, da memória.
E uma dupla de numes invoquei:
O pastorzinho e a anima da estória.

Ela em figuração de Helena,
Bem poderia ser Maria, não Thaís,
Mas a conjunção valeu a pena
E pude ser então tudo o que quis...

O contraste extremo branco e negro
Como minha nota e desempenho
Resultou num timbre até mais íntegro

Ele, noite dos mistérios que venero,
Ela, branca qual papel do meu desenho
Ou aquele do soneto em que me esmero...

(sem data)

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Encontro com a Moira (de Alma Welt)

Estar em sintonia com a beleza
E ao ritmo fluindo de um adágio
Escolhido como som da Natureza,
Longe de conflito e de presságio,

Era só o que eu queria e esperava
Antes de encontrar-me com a Moira
Surgida como dama fria e loira
Quando eu nestes prados passeava,

Que ao fitar-me quase me abismou
Enquanto me dizia em voz soturna:
“Alma cara, o teu tempo se esgotou...”

“Se tanto te esperei, não desesperes
Que não serei pra ti sombra noturna
Mas abraço de irmã, se assim preferes...”

17/01/2007

domingo, 16 de maio de 2010

O ninho do pássaro de fogo (de Alma Welt)

O vento acompanhou meu crescimento
Desde que aqui fui transplantada
Por sorte num perfeito e bom momento
Para neste Pampa ser moldada.

Bá! Como uma potra agradecida
A correr de imediato na coxilha,
A abrir assim os braços para a vida,
E a dar-me ao Minuano como filha.

Não posso então queixar-me, nunca pude,
Apesar daquele mítico percalço
A que refiro, comovida e amiúde,

Pois aqui fui arrancada como um ninho
Do pássaro de fogo que ainda alço
E que persigo como um éden de carinho...

(sem data)

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Auto-definição (de Alma Welt)

Não sendo afinal tão transparente,
Por puro gosto do mistério e do oculto,
Nichos secretos guardei na minha mente
E sempre acompanhada por um vulto,

Não que seja o Mal ou coisa assim,
Nem mesmo eu diria ser a “sombra”
Porquanto sua presença não me assombra
Embora não também um serafim.

Mas a musa Erato, mais que ninfa,
Ou a bela Psiqué... então princesa,
Que é do meu pomar a própria linfa.

Uma forma-pensamento da Beleza,
O verso conclusivo e mais profundo,
Minha Anima, Welt, que é o Mundo.

(sem data)

Nota
Soneto descoberto esta manhã na Arca da Alma, e que me parece uma verdadeira "chave" para a comprensão do universo da grande poetisa universal do Pampa.

terça-feira, 6 de abril de 2010

O olhar do Poeta ( de Alma Welt)

Tudo merece verso, nada escapa
Ao abraço amplo da Poesia
Que é tão somente a antiga capa
Que as coisas e os seres envolvia

No tempo das brumas e mistérios,
Quando envolto em névoas de magia
Vagava o ser por entre eremitérios
Buscando o que o Graal esconderia.

O Cálice, agora já o sabemos,
Está entre nós em quase tudo
Que o olhar desvela quando vemos.

Mas ver ainda é segredo do Poeta,
Pois que o vulgo tem o olhar mudo,
Sem o Todo e o Sacro como meta...

12/08/2005

O que é a Alma (de Alma Welt)

Ter um olhar claro sobre o mundo
Foi sempre o meu maior escopo.
Verde nos meus olhos, claro e fundo...
Quanto a julgamento: nem um pouco.

Buscando restaurar os tons primevos,
Em meio à uma bruma retornada
De tempos difíceis, medievos,
Entre trevas e a aurora anunciada...

Não mais me diz respeito a ninharia,
As falhas do meu tempo, a ignorância.
Viver como se o mundo a compreendia

Eis mesmo o que de si foi esperado
Por aquela que não conheceu ganância
E aguarda da Beleza o seu primado...


(sem data)

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Noites do casarão (de Alma Welt)

Minhas noites aqui neste casarão
Há muito já não me trazem paz,
As correntes arrastando pelo chão
Ou coisas que o valham, lá de trás,

Ais, sussurros, alaridos e patadas
Povoam desde o sótão ao porão
De vultos e memórias assombradas
A casa decadente, em profusão.

Mas eu tolero tudo isso por amor
Da sombra forte e doce da heroína
Que me honra repartindo a sua dor,

Anita, que eu espero na fronteira
Valhacouto da amiga derradeira
Entre a vigília e o reino da morfina...


(sem data)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Expedição ao Cerro (de Alma Welt)

Bem cedinho partimos pro Jarau
Com nossas mochilas e cajados.
Chegamos, não mais jovens e corados,
Tendo atravessado o rio a vau.

Perdi nessa jornada um meu amigo,
Outros tiveram medo e desistiram.
Os amores que, valentes, persistiram,
Surpreendentemente estão comigo.

Os que restamos com fé e sem cobiça,
Mantendo a esperança como antes,
Chegaremos à sala dos diamantes

Onde a Salamandra se espreguiça
Do sono milenar enquanto espera
Vencermos em nós mesmos nossa fera...

(sem data)

Nota
Como muitos da Alma, soneto nitidamente simbolista. O mito gaúcho da Salamanca (ou Salamandra) do Cerro do Jarau, eternizado por Simões Lopes Neto, foi aqui abordado como metáfora da jornada da vida. O rio atravessado a vau certamente deriva de Heráclito... (Lucia Welt)

domingo, 17 de janeiro de 2010

Receita de licor (de Alma Welt)

É tão oculto e raro o ambiente
Que se faz necessário ao cozimento
Da polpa das horas com a semente
De poesia, na alma em fogo lento.

E depois de decantar e arrefecer
Deixar fermentar por muitas horas
Antes que vás servir e oferecer
Mas evitando fazê-lo às senhoras,

Pois esta bebida não foi feita
Para a mente fraca ou leviana,
Nem pra ociosos pés-de-cana...

Esse licor é claro, forte, mas sutil,
E nasceu com Deméter, da colheita,
Detentora do alambique e do funil.

(sem data)

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O espectro (de Alma Welt)

Diante da casa detive meu cavalo
E notei que continha não memórias,
Mas ninharias que não foram pelo ralo
Do tempo a escorrer as suas horas...

Dei rédeas ao meu pingo e retornei
Pois prefiro os espectros com que privo
Ainda que um pareça um morto vivo,
O Valentim, cuja saga já contei...

Pois bem: no seu pescoço ainda deixa
Um resto da corda que o sustenta
Para a toda a eternidade dos perdidos.

Mas posso conviver com sua queixa
Enquanto o coração ainda agüenta
Os lamentos, o pranto e os gemidos...

17/04/2005