sábado, 12 de dezembro de 2009

O Ogro (de Alma Welt)

A cada dia descubro nova face
Do meu próprio enigma na vida,
Mas se a alma gosta de disfarce
A inteireza está comprometida.

Não sou uma, sou muitas, isso dói,
Embora faça viver intensamente.
Viver somente a vida como soe
Já não pode acalmar a minha mente.

Então amo, escrevo e vivo em dobro
Nos cenários desta e de outras vidas,
Sempre a fugir do Grande Ogro,

Um cavaleiro negro e embuçado
Que perpetra no escuro as investidas,
Pois nunca mostra a face o nosso Fado...

(sem data)

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Canção sinistra (de Alma Welt)


A Peste- de Arnold Böcklin 1827-1901


Canção sinistra (de Alma Welt)

Chegamos ao fim, não tem mais jeito,
O mundo se acabou e já o vemos,
O Mal é o burgomestre ou o prefeito,
O caos se instalou e é o que temos.

Corram, corram, amigos desta aldeia
Aí vêm do tirano os quatro esbirros,
Foices já não brilham e a cara feia
Respingadas pelo sangue nos espirros.

Um corvo ali crocita no patíbulo
Mas a madrugada ainda teremos,
Vamos todos juntos ao prostíbulo.

Dancemos, cantemos e bebamos
A manhã por certo não veremos.
Ah! A vida foi tão breve e já nos vamos...

17/01/2007


O Eterno Cavaleiro- Litografia de Guilherme de Faria

domingo, 22 de novembro de 2009

Patética e inacabada (de Alma Welt)

O soneto é partitura do meu dia
E contém as notas, timbre e tom
De um andante meu na pradaria,
Dispondo se o concerto será bom.

Mas ao primeiro acorde inusitado
Regerei meu dia entre visões
E propensa a consultar o Fado,
Maestro verdadeiro... de ilusões.

Vê, o primo verso em tom saudoso
Já me arrasta em vã melancolia
Pelo longo adágio do meu dia...

Mas de minha sinfonia inacabada
O patético “finale maestoso”
Há de compor-se ao termo da jornada.

(sem data)

sábado, 21 de novembro de 2009

De feiticeiras, sopranos e contraltos (de Alma Welt)

Amar, grande mistério, é Deus em nós,
Assim como odiar é o Diabo.
E este dito perdura muito após
O tempo em que o cujo era invocado

Não só a torto e a direito nas igrejas
Mas na cozinha das velhas feiticeiras
Que com a feiúra e nariz de brotoejas
Aqueciam mais que nossas mamadeiras,

Mas asas de morcego e alguns sapos
Com o fio de cabelo de um incauto
Que ousara cuspir nos nossos trapos.

Bah! Miséria... do soprano até o contralto*,
Destino da mulher por tantos séculos,
Pernas abertas a sementes e espéculos!*...

(sem data)


Notas

*...do soprano até o contralto- Alma quer dizer: das mulheres frágeis até as mais fortes.

*...sementes e espéculos- significa a procriação e a tortura (espéculo, hoje em dia um instrumento médico ginecológico, era um instrumento de ferro para torturar mulheres nas masmorras da Inquisição. Sugestivamente, a palavra deriva do latim, speculum= espelho. (Lucia Welt)

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Arte em mim (de Alma Welt)

Dei-me cedo a mim mesma permissões
Que a Vida não daria de bom grado
A um astro, soberano ou potentado,
Mas no mundo interno: o das visões.

Aqui fui princesa e sou rainha,
Estrela maga, infanta, feiticeira.
Aqui a bela Terra é toda minha
E a minha visão é a verdadeira

Pois não há como de mim desencantar
O mundo que criei, de tão sutil
A diferença entre o ser e o avatar.

E se o Mistério há em toda parte,
Em mim cristalizou-se como arte
Com as palavras gravadas a buril....

(sem data)

sábado, 7 de novembro de 2009

O Sonho do casarão (de Alma Welt)

À meia-noite o sonho começava
Após a badalada derradeira,
Como doze golpes numa aldrava
De outra grande porta de madeira

Que não a do próprio casarão
Mas do castelo em festa, revelado,
Que há aqui mesmo no sobrado
E que emerge das sombras do porão

Lá onde as garrafas dormem cheias
E esperam, cada vez mais preciosas
Um novo tempo de vinhos e de rosas

Que só ocorrerá no mesmo sonho
Pois o Tempo suspenso tece teias
Que enredam o real reino tristonho.

(sem data)

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A Usurpadora (de Alma Welt)


Da série Dança Macabra- xilogravura de Rethel

A Usurpadora (de Alma Welt)

Após a queda, retorno ao casarão,
Que andara pelo mundo, peregrina
Em busca de algo numa esquina
Que mesmo aqui estava, neste chão.

De meu feudo a Morte me expulsara,
Não me queria aqui sem o meu Vati.
Da Infanta destronada se livrara,
Que me tornara amarga como o mate...

A Usurpadora lágrimas não quer,
Um pé lá, outro na vida, qual anfíbia,
Mas na macabra orgia é só mulher,

Devassa, sinistra e falsa amável,
A vi tocar um violino numa tíbia
Na sala do defunto inigualável...

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Noites retornadas (de Alma Welt)

Noites retornadas na memória!
Belas noites quentes de verão
Quando eu contava nossa estória
Para meus guris amados, no portão

Frente à relva coruscante deste prado
Na orla do jardim da velha Frida
Do ilustre casarão meio arruinado
Pela saga intensa de outra vida

E revíamos os amores e as lutas
Que eu mesma narrava sem receios
Sem me saber herdeira das disputas

Que depois fizeram ver a dura lança
À nova estirpe por outros rubros meios:
Derramando nosso vinho e nossa herança...

(sem data)

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O cavaleiro (de Alma Welt)

Pelas noites vinha o cavaleiro
Armado de fuzil e cartucheira,
No peito, cruzada, a bandoleira
E na cintura uma faixa de toureiro

Com o punhal de prata e bombachas,
O chapéu era pequeno e dobrado,
Tinha fileiras de bordadas tachas
Na frente, e aos ventos do meu prado.

Mas ele cavalgava sem um senso
E mirando-me assim ele apontava
Mas passando por mim arremetia

No louco rumo do nevoeiro denso
Onde por encanto ele sumia
Enquanto o véu do tempo se fechava...

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Iniciação (de Alma Welt)

À meia noite o portal se abria
E tudo se passava no meu bosque.
Eu saía do meu quarto e lá eu ia
Para o mágico encontro no quiosque

Das fadas e demais elementais
Que temias, eu me lembro, e evitavas
Como conspirações de ardis fatais
Que nos mandariam e tudo às favas:

A ordem, os desígnios e o destino
Que a gente há muito construía
No plano destes prados, dia a dia.

Mas tu mesmo, Rodo, foi primeiro
A me mostrar no espelho o aço fino
Entre o bosque e o mundo verdadeiro.

(sem data)

sábado, 5 de setembro de 2009

O Bosque da Poesia (de Alma Welt)

O meu bosque é território de magia
Desde que bem criança o adentrei
Sozinha, pois que medo não havia
Apesar do silêncio que encontrei

De súbito rompido pelo canto
Que, romântica, chamei de “rouxinol”
Pois que era o momento do encanto
Com os últimos reflexos do sol.

Mas logo sombras se adensaram,
Se fizeram ver e ameaçaram
Com a face escura deste mundo

Até que entre as fadas e a guria
Selou-se então o pacto profundo
Que é a fonte ou raiz desta Poesia...

(sem data)

Dupla Saga, ou Sonhos do casarão (de Alma Welt)

Quando à noite o casarão dormita
E sonha a saga digna e honrosa
De uma família não tão esquisita
Como esta dos Welt, espantosa,

Eu ouço os murmúrios e até gritos
Das batalhas finais dos farroupilhas,
Quando as preces igualmente dos aflitos
Eram por outros lances e outras filhas.

Agora quem nos reza longo terço
É a Matilde, o vero esteio desta casa
Que protegeu “las niñas” desde o berço

E jurou não deixar o mal interno
Se agitar em nós como uma asa
Negra, que ela teme vem do Inferno...

(sem data)

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Post Mortem (de Alma Welt)

Peregrina a vagar nas pradarias
Eu me tornei a Alma do meu Pampa
E os gaúchos em suas montarias,
Reverentes vêm até a minha campa

E apeando depositam um raminho
De flores do meu campo em primavera,
Ou dos seus amargos um saquinho
Antes de seguirem pra Rivera

Onde o prado encontra os castelhanos
Que outrora ferozes combatemos
E que agora na verdade tanto amamos

E temos como símbolos do humilde
(pelo menos os fiéis que recolhemos),
Corações como o Galdério e a Matilde.


(sem data)

terça-feira, 7 de julho de 2009

Posteridade pampiana (de Alma Welt)

Estarei por aqui por muito tempo
Nestes prados e sendas ancestrais,
Vagando nas noites estivais
Ou mesmo cavalgando contra o vento,

Esse frio Minuano que é meu rei
E soube das minhas ambições,
Dos sonhos que urdi e os que herdei
Dos godos meus avós e dos peões,

Em brios carregando em suas selas
A herança eterna farroupilha
Que anima o casarão e acende as velas

Que aqueceram de mim mesma a vã vigília
Repleta das lembranças de uma vida
Tão ardente e em poesia consumida.

07/01/2007

domingo, 21 de junho de 2009

A casa vazia (de Alma Welt)

Minha casa imensa ora me assusta
Pois foram-se os amigos e parentes
Minha Mutti há muito não me susta
Prazeres que achava impertinentes.

Pois que ela também, há muito, foi-se
E Solange a seguiu, depois Alberto.
Todos eles... mas a tal dama da foice
Deixou minha data ainda em aberto.

E Geraldo, não mais que um bandido
E de minha doce Lucia um mau marido
Que ousou muito abusar desta guria,

Esse não faz falta e ainda me assombra
Com espectros trazidos da coxia
Do palco que agora vive em sombra...

29/12/2006

Nota
É estarrecedor pensar como a guria do pampa sofreu, vendo seu "palco" se esvaziar, e o fantasma de seu estuprador ainda a assombrá-la...
(Vide o romance O Sangue da Terra):
http://romanceosanguedaterradealmawelt.blogspot.com

quinta-feira, 18 de junho de 2009

O cavalo de fogo (de Alma Welt)

Por aqui o cavalo vai sem meta
Todo em chamas a vagar na pradaria
E me lembro do outro, o do poeta
Lima que seu livro incrível lia.

E hesitamos, eu, Rodo e Galdério
Em segui-lo à distância pela noite
Pois seu rastro deixado como açoite
É como aquela luz de cemitério,

De santelmo, como dizem marinheiros
E o gaucho que se esvai em pleno pampa
O avista nos momentos derradeiros

Quando segurando o ventre rubro,
E da coxilha a galgar última rampa
Segue o íncubo cavalo que descubro...

(sem data)

quarta-feira, 10 de junho de 2009

O embuçado (de Alma Welt)

Galdério, ó Galdo, o que é aquilo
Que vimos, embuçado, pela estrada
Quando íamos a passo bem tranqüilo
E então me vi sobressaltada?

“Alma, patroinha, não é nada,
Aquele não é senão Judas Leproso,
E a sineta de som pouco lamentoso
Ele agita pra afastar a peonada,

Que de longe lhe deixa o de comer
Pois dinheiro não lhe querem pôr na mão,
Que outros não iriam receber...

E a pobre alma penada é intocável,
E morrerá sem que jamais nenhum peão
Le mire a face morta e deplorável...”

(sem data)

Reminicências (de Alma Welt)

Outrora eu ia nua até a fonte
Buscar água e ervas milagrosas
Que aprendia com mestre Quironte
O mago das quatro patas grossas.

Nos sagrados bosques de Elêusis
Fui discípula daquele sábio nume,
E por colegas tive semideuses
Cultuando do mestre o claro lume.

E ninfa eu mesma fui ou me tornei,
Perdoem-me vocês a bizarria
Aparente do que agora me lembrei,

Pois o que fluente a mente aborda,
Reparem, não é nenhuma algaravia
Mas aquilo que a alma ainda recorda...

(sem data)

terça-feira, 9 de junho de 2009

O nevoeiro (de Alma Welt)

Chegou a estação dos nevoeiros
Que erguem na campina denso muro
E faz tremer valentes e vaqueiros,
Pois pra eles ali mora o lado escuro.

O bosque proibido está imerso
Na bruma da fantástica neblina
E não haverá um ser perverso
Que não habite além desta colina.

De branco então entro em névoa alva
Para espanto do Rodo e do Galdério,
Como adentrasse à noite o cemitério.

Nessa nuvem densa e silenciosa
Eu encontro meus seres, sã e salva,
Pois da mesma natureza esplendorosa...

06/06/2005

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Vento, cavaleiro (de Alma Welt)

Vento, cavaleiro da colina,
Vem buscar-me, ó vento da manhã,
E leva-me contigo à outra sina,
Não me deixes morrer de forma vã.

Deixa-me voar, sou toda aérea
E minha pele é clara como o ar
Sou filha dos elfos, quase etérea
E não queria à terra assim baixar.

É por isso que alço os meus sonetos
E deixo o corpo por instantes
Que é a minha forma de ficar

Entre sonhos e espectros constantes
Que me instigam e lançam os motetos
Que me doam as asas pra me alçar...

(sem data)

As vozes do Tempo (de Alma Welt)

Levanto-me ao ouvir os sons da noite
Que aos outros parecem inaudíveis,
Não de grilos e sapos, sons tangíveis
Do Tempo, onde quer que ele se amoite

Pois de dia se evaporam e exalam
Sob o azul que quer só o presente
Ao vento das campinas onde calam
Os talos do capim que se ressente.

E como os que estiveram deste lado
Eu me vejo desde uma outra infância
Auscultando os sussurros do passado

E a verter das noites para os dias
As vozes gravadas à distância
No silêncio destas velhas pradarias...

(24/05/2006)

A Era romântica (de Alma Welt)

Eu já estive nesta casa, eu o sinto.
Sentava-me à mesa como agora,
Os convivas se enchiam de absinto
E tardavam muito a ir embora.

Mas me lembro de um que era sóbrio
E notando meu desgosto e desalento
Para evitar-me algum opróbrio
Me convidava a passearmos ao relento.

E eu já então chegada ao verso
Declamava para ele minha poesia,
Concentrando seu olhar nada disperso.

“Abandonei os bebedores comezinhos”
-ele com olhos marejados me dizia-
“E me embriago agora de outros vinhos...”

08/03/1990

Nota
Alma quando estudou na Alemanha, foi à França e visitou parentes na Alsácia-Lorena, terra de nossa avó Frida, e disse ter sentido a sensação de já ter estado na vetusta casa onde aquela nasceu e morou até a juventude. Então escreveu este soneto que expressa essas sensações, que ela considerou reminiscências de uma sua encarnação na “era romântica”. Resta saber quem foi esse interlocutor...
(Lucia Welt)

Ofélia (de Alma Welt)

Hoje o dia amanheceu enevoado
Evocando antigas brumas de Avalon,
Mas levanto e capricho no penteado
Em bandós e nem um toque de baton.

E com uma saia longa e meu chale
Me vejo um tanto mais vitoriana
A vagar numa charneca ou num vale
Como Tess, e muito menos pampiana.

Então, triste e encarnada no papel
Vou até o soturno lago meio opaco
E me inclino sobre águas como um véu

Que me nega as luzes que preciso
Para mirar meu rosto ainda que fraco
E mais para uma Ofélia que Narciso...

10/01/2007

A abantesma (de Alma Welt)

No riacho que produz minha cascata
Costumo vadear erguendo a saia,
Ou “vadiar”, diz Matilde caricata
A frisar minha brancura que desmaia.

Ou então, ela diz, "faz desmaiar",
Pois pudica que é, quer alertar-me
Ou prevenir que o povo vai acreditar
Qu’é d’uma abantesma este meu charme.

Mas estou mais inclinada ao nu total
E há muito que com Rodo ou sozinha
Sou eu a alva ninfa em meu quintal.

E o povo a lenda ama e perpetua:
“Visagem” sou da branca patroinha,
Que muito hei de vagar à luz da lua...

08/06/2005

Plantei um poema em meu jardim (Alma Welt)

Plantei um poema em meu jardim,
Mais secreto e apto a dar flores
E que oculto permanece quieto assim
No tempo em que se agitam os amores.

Enquanto a juventude canta e geme
Lançando sua semente aos quatro ventos,
As minúsculas embarcações sem leme
Que vão dar às praias e tormentos,

Esta semente do poema da velhice
Lança suas raízes bem mais fundo
Antes de alcançar a superfície.

Pois meu poema sábio e despojado
Ainda não nasceu e é tão calado
Que talvez nem seja deste mundo.


05/10/2006

Os Tempos e os Ventos (de Alma Welt)

Inolvidáveis tardes do meu prado
Quando em silhueta e uma aura
O adeus deste poente agraciado
O rubro dos cabelos me restaura

E junto ao grande umbu frondoso
No alto da colina em pleno pampa
Me vejo tal qual aquela estampa
Do vento que levou o nosso gozo

E então retorno e subo ao casarão
Que anoitecido desperta suas memórias
Como os guris a deslizar no corrimão

De seus jovens sonhos revividos
De outros poentes e outras glórias
De tempos e ventos esquecidos...

(sem data)

Memórias farroupilhas (de Alma Welt)

Pelas trilhas em volta do sobrado
Que se eleva sobranceiro na planície,
A fachada como a face de um barbado,
Com sua decantada esquisitice,

Recoberta pela hera e não grisalha
Conquanto mais vetusta que a do Vati,
E que sobe a parede até a calha
Com sua textura cor de mate,

Eu perambulo nos dias e nas noites
Procurando senhas e vestígios
Dos antigos farrapos e prodígios

Que me são anunciados por murmúrios,
Gemidos de cilícios, seus açoites,
Os vôos da memória e seus augúrios...

17/11/2006

O dia e a noite (de Alma Welt)

Os últimos albores na planície
Costumam me levar à compreensão
Súbita e fugaz da imensidão
Contra o humano limite e superfície.

Eu sei, o sol é Deus e é visível,
Olho severo mas sensível e amoroso
Que doura o nosso mundo compreensível
Pra mergulhar depois no duvidoso.

E assim, o que o sol nos esclarece
O sono desmente ou desvirtua
E temos que rever o que parece.

Agora em suas sombras e estigmas
A noite das estrelas e da lua
Nos convida ao sonho dos enigmas...


(sem data)

segunda-feira, 4 de maio de 2009

O bosque da donzela nua (de Alma Welt)

Na floresta que é meu bosque para mim
Desde guria eu vou pelas amoras
E pelas matinais aves canoras
E as de quando o dia chega ao fim.

Mas é de noite que sou a sua Infanta
E só eu tenho a coragem de adentrá-lo,
Que ao povo, há de sempre apavorá-lo
Aquela fadaria que me encanta.

Mas ali me viram com as lanternas
Como donzela nua e exangue
A escorrer meu mênstruo pelas pernas.

Pois é essa a ousadia que perpetro,
E gerou a lenda de um espectro
Que mancha os cogumelos de seu sangue.

05/12/2003

domingo, 3 de maio de 2009

De eras, heras e medos (de Alma Welt)

"...Où sont les neiges d'antan?"
(Balada das Damas dos Tempos Idos -(François Villon)


As vetustas paredes desta casa
Guardam sonhos da farroupilha era,
Também medo tardio que extravasa
E se alastra agora como a hera

A recobrir daninha esta fachada
Tornando-a mais sombria que vital
E nada hospitaleira à convidada
Que eu trouxe da longínqua capital

E que de noite acorda e se me agarra
A debater-se qual barca em sua amarra
Na torrente dos soluços e das mágoas

Das prendas que qual "neves d’antanho"
Ora permitem degelar as suas águas
Pois que então o heroísmo era tamanho...

2004


Nota

Acabei de encontrar este soneto inédito que percebi corresponder aos primeiros tempos da estada de Aline na estância, quando ela ainda se aterrorizava com os ruídos e murmúrios noturnos do casarão. A propósito (ou não) a namorada paulistana da Alma teve um filho de nosso irmão Rodo e acabou voltando com a criança (Marco) para São Paulo, contra a nossa vontade (que a amávamos), depois de dois anos (vide o romance O Sangue da Terra, de Alma Welt, no blog com este nome). (Lucia Welt)

sábado, 18 de abril de 2009

O ninho da Salamandra (de Alma Welt)

Iremos lá, àquele Cerro, meu irmão,
Como fomos juntos às Missões,
Sete Povos, lembra? num verão,
Quando a lenda nos tocou os corações.

Mas ao Jarau iremos delirantes,
E assim encontraremos o caminho
E chegaremos à sala dos diamantes
Onde a Salamandra fez seu ninho.

E seguiremos, eu sei, e não malditos
Pois não somos movidos por ganância,
Mas pela graça de nossa leda infância.

Quanto ao ouro e o poder, estes gigantes
Não nos poderão deixar aflitos,
Que o tesouro vive em nós e vem de antes.


14/10/2006

sexta-feira, 10 de abril de 2009

O Labirinto do Minuano (de Alma Welt)

Encontrei a passagem numa estante
Da fiel biblioteca e nosso gozo
Aqui no casarão, que num instante
Afigurou-se um labirinto perigoso.

Esta noite irei me aventurar
Pelo dúbio corredor mas instigante,
Não deixando todavia de me atar
À ponta de um novelo de barbante,

Mas temo que a passagem, por secreta,
Levará a imponderável metaplano
Que por certo nunca foi a minha meta,

E no centro do sulino labirinto
Estará o minotauro: o Minuano
Que, sim, me levará, eu bem o sinto.

03/11/2006

sábado, 28 de março de 2009

O vinho e o Graal (de Alma Welt)

Percorrendo em vigia meu vinhedo
Tive linda visão e inusitada:
Um cacho isolado qual segredo
Pois que sua cor era dourada.

"Um cacho de ouro!"- exclamei.
"Galdério! Vem ver o que encontrei!
Vê se é uma praga, anomalia
Que possa destruir toda a valia

Da safra e também do nosso esforço!
O cacho é pirata ou belo corso?
Deixo contigo juízo e decisão."

“Alma”- respondeu sábio o peão-
“Então não vês que o ouro é o sinal
De que temos o vinho e o Graal?”

(sem data)

Nota
Acabo de encontrar este curioso e encantador soneto, de acentuado pendor simbolista. E me lembrei de que na época, eu morando em Alegrete, ouvi comentários sobre o espantoso cacho dourado no meio do vinhedo, que se tornou uma das lendas da Alma e de nossa estância. (Lucia Welt)

segunda-feira, 16 de março de 2009

Onde vivem os deuses (de Alma Welt)

E eu cantaria o amor que me coubera
Ao nascer de novo nestes pagos
Isolados do mundo, noutra era,
Onde vivem os deuses e os magos.

Aqui me apaixonei por meu irmão,
Que como Eros piá vivia alado,
Sem dar-nos conta da cruel proibição,
Pois somente guiados pelo Fado.

Eis que num certo dia, aziago,
Fomos flagrados ao pé da minha Ara
Num lance que faria grande estrago

Não fora em nós a reverência e a fé
Nos nossos velhos deuses, coisa rara,
Que nos salvou o amor e... a alma até.

(sem data)

quarta-feira, 4 de março de 2009

Aqui estarei (de Alma Welt)

Aqui estarei, meu Rôdo, quando tudo
Naufragar em nós com o navio
Que é este casarão já quedo e mudo
A crepitar como uma vela sem pavio,

E nós, como sombras sorrateiras
Esgueirarmo-nos por estes corredores
Ou por este salão e suas soleiras
Que olharão para os últimos albores

Já a nos ver espectrais em cavalgadas
Ou mesmo a pé a vagar nas pradarias
Nas novas noites, eternas e tão frias...

Ai! Não mais claras manhãs, e orvalhadas,
Onde rindo perdoavas meus deslizes
E eu aos teus, por sermos tão felizes!

14/01/2007

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

O Congresso dos Elfos (de Alma Welt)

Esta noite irei de novo ao bosque
Pois senti o chamado dos meus elfos
Com as luzes que emanam do quiosque
Como outrora a pira lá em Delfos.

Devo juntar-me ao minúsculo congresso
De duendes e demais entes bisonhos
Pois há muito espero o seu regresso,
Ó tempo da alma e dos sonhos!

Mas a pequena rainha que preside
A reunião desses bons elementais
Não exclui o mal que ali incide,

Que por esses meu leito não deixava:
Pérfidos trolls e worlocks brutais,
Na erma noite que a neblina agrava.

(sem data)


Nota
Este soneto, como outros da Alma que se referem ao seu bosque(que temos aqui na estância) que nos era proibido em nossa infância por nossa Mutti, me fez recordar o belo e sinistro poema de Henry Treece musicado e cantado pela grande cantora folk Joan Baez nos anos 60. Reencontrei-o no You Tube. Vale a pena recordá-lo e comparar seu sentido com os sonetos da Alma sobre o tema:
http://www.youtube.com/watch?v=YI8O4uSVzO8

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Pôquer de Máscaras (de Alma Welt)


Alma-Desdêmona (desenho de Guilherme de Faria)


Pôquer de máscaras (de Alma Welt)

Em torno da mesa, mascarados
Camuflam os olhares e a esperteza,
Os meneios sutis, inusitados
Deste antigo pôquer de Veneza.

É pleno Carnaval, e os jogadores
Reunidos num salão abobadado,
Palácio de outra era, de outras dores,
Num tempo que parece retornado

Desdêmona passou de tranças feitas,
Feliz, antes da Noite das suspeitas,
E Giacomo, depois, como aprendiz

De aventureiro e sedutor empedernido
Sob a máscara de fálico nariz
Que tanto coração deixou perdido.

25/02/2005


Nota
Alma assistiu uma vez, em Veneza, em pleno Carnaval, num palácio sobre o Grande Canal, um tradicional jogo de pôquer mascarado, de que Rodo participou. Alma em longo vestido de época, armado, com magnífica máscara branca e um grande leque de plumas, deslisava por ali, à volta da mesa. Ela jamais se esqueceria dessa experiência que fez seu espírito vagar por outras eras, naquela misteriosa e romântica cidade. Pouco depois, retornada ao Brasil ela me declamou esse soneto. Agora, como estamos no Carnaval me lembrei dele e fui procurá-lo na montanha de papéis de sua arca. Encontrei-o afinal, oportuno, pois Rodo se encontra em Veneza e me enviou um postal dizendo que está participando novamente desse tradicional e exclusivo pôquer de máscaras, em que se senta ao lado de banqueiros, magnatas, e eventualmente, até... chefões da Máfia (não posso deixar que a preocupação me tome...) (Lucia Welt)

*Desdêmona passou de tranças feitas- Alma sugere com este verso que a mulher de Otelo, vagou por esse salão quando donzela, solteira (de tranças) feliz , antes de começar o tempo das terríveis suspeitas, dos cíúmes, de seu futuro marido, o Mouro de Veneza.

*Giacomo, depois, como aprendiz- Alma se refere ao famoso sedutor veneziano, Giacomo Casanova, do século XVIII, de época bem posterior à de Desdêmona (século XV), e que começou sua carreira de aventureiro ainda jovem na sua Veneza natal, nas mesas de pôquer, onde conseguia se aproximar dos nobres e da "elite" financeira, que logo o encarcerou, pois ele roubava no jogo com a ajuda das mulheres desses nobres, as quais ele seduzia. Casanova foi condenado à morte, mas conseguiu fugir da prisão sobre o canal (vide a "Ponte dos Suspiros") e ficou exilado de Veneza para o resto da vida, vagando pelo salões da Europa.
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quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Leda e o Cisne (de Alma Welt )


Leda e o Cisne- mármore veneziano

Leda e o Cisne (de Alma Welt)

Decidi experimentar volúpia nova
E encarnar princesas mitológicas
Acolhendo as entidades pouco lógicas
Que Zeus transfigurado punha à prova

Na doce e embevecida prontidão
Em tê-lo entre as coxas bem no meio
Ou como chuva de ouro no meu seio
Mesmo que ensopasse meu colchão.

Assim comecei pelo meu cisne
Que ganhara de meu pai, enternecida
Por sua beleza branca enaltecida

Em que senti das plumas como seda
Emergir rubro arpão sem que me tisne
As pétalas e encantos, como Leda...


(sem data)

A nuvem de Io

Zeus e Ío (1530), por Correggio (ativo a partir de 1514- falecido em 1534)

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Depois do cisne, resolvi, uma por uma,
Desafiar Metamorfoses mais sutis
Pois há sempre a rota em que se ruma
E Zeus não lança mão de formas vis.

Como Danaé no estranho banho
Dourado que a veio iluminar
Assim eu mesma tive um ganho
Ao pedir ao meu amor pra me dourar.

Faltava agora por nuvem ser tomada,
E como nunca apreciei o “fumacê”
Não conseguia matar esta charada.

Então junto à cascata do meu rio
Envolta nua no vapor que ali se vê,
Fui possuída como a sonhadora Ío.

(sem data, circa 1999)

Nota

Percebe-se que o Mito da chuva de ouro de Danaé Alma resolveu com a simples urofilia, coisa que na verdade ela já conhecia bem com nosso irmão Rodo desde a infância. Note-se que urofilia ou urolagnia é uma prática sexual mais comum do que se pensa e conhecida popularmente como "banho dourado". Quanto à transformação de Zeus em nuvem para possuir a princesa Ío, Alma resolveu lindamente ao entregar-se ao seu amor em meio à neblina que se forma na nossa cascata, mais fortemente numa certa época do ano.(Lucia Welt)

sábado, 31 de janeiro de 2009

O casarão (de Alma Welt)


O casarão na noite- óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 30x40cm


Meu casarão é vivo e tem história
Mas também tristezas e rancores.
Por trás de sua velhice e sua glória
Há paixões, a sede dos amores.

É de noite que arfando mostra vida,
Cobrando suas dores e falências...
E eu saio a vagar entre as hortênsias
No jardim espectral da velha Frida,

Pra só voltar ao leito quando exausta
E quando já os galos predominam
Sobre os rumores desta casa infausta.

Então eu me desnudo e os convido,
Amores que em torno os ares minam,
A repousar em mim o seu olvido....

07/06/2006

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Os encantos da alma (de Alma Welt)

Nas sombras cristalinas do meu bosque
Eu andei desde pequena solitária
E aprendi a ver as fadas num quiosque
E a rainha em sua forma vária

Que me chamava assim ao seu convívio
Pra me ensinar as coisas encantadas,
Longe da aridez e do oblívio
Das almas em que elas são negadas.

E eu ainda hoje me admiro
Do paradoxo da negação de tantos,
Já que à própria alma sobra encantos

Apesar de estar no mundo camuflada
A refletir no corpo quase nada,
A não ser num olhar e num suspiro...

09/11/2005



Nota

Por minha vez encantada, acabo de encontrar este soneto encantador da Alma em sua Arca inesgotável de inéditos. Este soneto me parece que já nasceu como um "clássico"...
(Lucia Welt)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

A Ilha dos Mortos- quadro de Arnold Boecklin


A Ilha dos Mortos- quadro de Arnold Boecklin 1827-1901


A Ilha dos Mortos de Boecklin (de Alma Welt)

Não pare de remar, ó meu barqueiro!
Faça jus à soma que lhe pago,
Não hesite perante o nevoeiro
Que já desce saudando o que aqui trago.

Ajude-me também co’este caixão
Pois sozinha não poderei plantá-lo
Num nicho desta ilha em solidão
Com só a minha dor a acompanhá-lo.

Ilha Fatal, eis que sou tripla refém,
De pé na proa, como tu a me alçar
Das águas que ousei atravessar

Desse Letes obscuro em que vogamos,
Com meu próprio caixão que me contém,
Nós três: um só, no barco que remamos...


18/01/2007

Nota
Acabo de descobrir este soneto na arca da Alma e que pela data foi escrito na antevéspera da morte da Poetisa. De profundo teor alegórico-metafísico, Alma parece ter interpretado o famoso quadro do Boecklin, que lhe inspirou o soneto, com o barqueiro, a figura de pé na proa e mais o morto dentro do caixão como sendo três faces do mesmo ser: o morto que chega por seus próprios meios à Ilha da Solidão.(Lucia Welt)

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Las Brujas (de Alma Welt )


As três bruxas- desenho de Hans Baldung Grien 1480-1545(Albertina, Viena)


A noite do meu bosque é de bruxedos,
E me preparo para ver coisas sutis.
É lua cheia, de feitiços e folguedos,
Para além do jardim dos mal-me-quis.*

Como sonâmbula à floresta me dirijo
Atraída como mariposa ao lume,
E atingindo do mistério o esconderijo
Como um "montañero" alcança o cume,

Eis que com “las brujas” me deparo,
Aquelas que "no creo pero existen",
As três, que em orgia ainda persistem:

Duas jovens, uma velha, e, nada raro,
Como votiva tocha um urinol
Em chamas, como insólito farol...

14/06/2006



Notas
*mal-me-quis -Alma se referia assim à ala de margaridas plantadas no nosso jardim por nossa mãe, a "Açoriana" de difícil relacionamento com minha irmã. Alma acreditava não ser amada pela Mutti, e isso foi motivo de dor durante toda a sua vida, apesar de sua vocação (ou esforço) para a alegria. (Lucia Welt)

Por ter sido avistada nua (!!) no no seu bosque uma vez, Alma foi vista por algum tempo como feiticeira. Mas somente entre os menos generosos...

Mas se os leitores interessados quiserem saber e sentir um pouco mais o que eram as incursões da Alma no seu bosque, sugiro que assistam estas cenas do filme francês de 1956, La Sorcière (A Feiticeira) com a linda atriz Marina Vlady (que me fez lembrar a Alma) no You Tube

http://www.youtube.com/watch?v=KNntLHWaxgU